II Congresso Nacional de Cirugia Ambulatória
II CONGRESSO NACIONAL DE CIRURGIA AMBULATÓRIA
Lisboa, 6 a 8 de Maio de 2002
Dr Paulo Lemos*
RELATÓRIO DO CONGRESSO
O II Congresso Nacional de Cirurgia Ambulatória, organizado pela Associação Portuguesa de Cirurgia Ambulatória (APCA), em colaboração com a Unidade de Dor do Hospital Garcia de Orta, Almada, e a Associação de Enfermeiros de Sala de Operações Portugueses (AESOP), decorreu de 6 a 8 de Maio de 2002, no Hotel Altis Park, na Cidade de Lisboa, com a presença de 450 participantes, maioritariamente médicos e enfermeiros. Incluiu ainda a realização da II Reunião Nacional de Enfermagem para Cirurgia Ambulatória, que teve lugar no dia 7 de Maio.
Estiveram representados oficialmente o Ministério da Saúde, na pessoa de Sua Excelência o Senhor Secretário de Estado da Saúde, Senhor Dr. Carlos Martins, em representação de Sua Excelência o Senhor Ministro da Saúde, e a Direcção-Geral da Saúde na pessoa de Sua Excelência o Senhor Alto Comissário da Saúde e Director-Geral da Saúde, Senhor Professor Doutor Pereira Miguel. Estiveram ainda presentes representantes das diferentes Instituições Oficiais dependentes do Ministério da Saúde que maiores implicações têm na organização e planificação da Cirurgia Ambulatória (CA), e que tiveram uma participação activa ao longo do Congresso:
• Direcção-Geral da Saúde (Dr. Adriano Natário);
• Direcção-Geral das Instalações e Equipamentos da Saúde, Centro Regional do Norte (Eng. Graça Rocha);
• Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde - IGIF (Dra. Maria do Céu Valente);
Incluíram-se ainda um grupo de personalidades estrangeiras com relevo internacional e larga experiência no domínio da CA, das quais se destacam:
• Dr. Lindsay Roberts, Presidente da Associação Internacional de Cirurgia Ambulatória (IAAS);
• Dra. Pilar Rivas, Membro do Comité Executivo da Associação Espanhola de Cirurgia Ambulatória (ASECMA);
• Dr. Hugh Bartholomeusz, Representante do "Royal College of Australian Surgeons";
• Dr. Ian Smith, Responsável pelo capítulo de Cirurgia Ambulatória da Sociedade Europeia de Anestesiologia (ESA);
Analisando-se a situação da CA em Portugal, os dois Inquéritos Nacionais Hospitalares efectuados pela APCA em 1999 e 2001 puderam mostrar a falta de expressão deste regime cirúrgico nos nossos hospitais públicos, tendo evoluído de cerca de 5,5% de toda a cirurgia programada para valores próximos dos 7%, respectivamente. Esta realidade nada tem a ver com a existente noutros países, nomeadamente aqueles que são nossos parceiros na Comunidade Europeia: Reino Unido (cerca de 65% de toda a cirurgia programada), Dinamarca (60%), Noruega (60%), Holanda (50%), Bélgica (45%) ou Espanha (35%); ou ainda naqueles que são referência mundial da CA: Estados Unidos (65%), Canadá (65%), Austrália (50%).
Foi uma vez mais reconhecido por todos os presentes que as múltiplas vantagens:
1. SANITÁRIAS:
1. clínicas - menor incidência de infecções adquiridas em meio hospitalar; menor incidência de complicações pós-operatórias.
2. organizativas - resultante de uma maior eficiência na realização dos programas cirúrgicos, possibilitando a redução sustentada e a longo prazo das extensas e tão mediatizadas listas de espera cirúrgica existentes.
2. ECONÓMICAS:
1. directa, através da redução dos custos hospitalares.
2. ou indirectamente, resultante da menor morbilidade ou da reintegração socio-profissional mais rápida.
3. SOCIAIS:
1. menor ruptura do normal ambiente socio-familiar dos doentes, em especial nas faixas etárias extremas, na pediatria e na geriatria.
2. mais rápida integração socio-profissional, com repercussão mais importante na população adulta profissionalmente activa.
3. maior humanização, através da criação de Unidades específicas e funcionais para a realização de programas de CA, onde o doente é o objectivo principal.
têm feito da CA um modelo de organização por excelência nas diferentes Sociedades dos Países altamente desenvolvidos, revelando-se este um modelo capaz de se adaptar a qualquer sistema, ultrapassando barreiras culturais, sociais ou políticas. Até países por nós considerados menos evoluídos já adoptaram de forma mais ou menos significativa este sistema. Referimo-nos a países como as Honduras, o Brasil, a África do Sul, a Tailândia ou a China (Hong-Kong) que hoje usufruem das vantagens que este modelo inovador na prestação de cuidados de saúde cirúrgicos pode proporcionar.
Para além disso, um enquadramento actual de um País como Portugal com:
• recursos económicos limitados;
• uma distribuição deficitária e heterogénea de profissionais de saúde;
• algum déficit em equipamentos hospitalares;
• uma elevada lista de espera cirúrgica;
• uma inadequada gestão de recursos humanos com baixa produtividade;
• clara insatisfação de utentes e de profissionais de saúde;
leva-nos a pensar, que a CA, sem ser a única e inevitável solução, poderá ser um excelente auxiliar para alguns dos graves problemas que infernizam o nosso SNS.
Porém, para que a CA possa ser uma realidade em Portugal, torna-se necessário que todos falemos a mesma linguagem. Na verdade foi notório ao longo do Congresso algum distanciamento por parte dos representantes dos diferentes Organismos do Ministério da Saúde relativamente ao significado, expressão e âmbito da CA:
1 - O conceito proposto pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) para CA será segundo o documento aprovado por despacho do Senhor Secretário de Estado da Saúde em Abril de 2000 e intitulado "Cirurgia Ambulatória - Recomendações para o seu desenvolvimento", toda a intervenção cirúrgica programada, realizada sob anestesia geral, loco-regional ou local que, embora efectuada em regime de internamento, pode ser realizada em instalações próprias, com segurança e de acordo com as actuais leges artis, em regime de admissão e alta no mesmo dia. Daqui se infere claramente que toda a cirurgia de urgência ou, por outro lado, a pequena cirurgia não são abrangidas por aquele conceito. Assim a CA destina-se única e exclusivamente a procedimentos programados de tipo major. Porém, quando no mesmo documento se refere à estrutura física, propõe um objectivo de produção surrealista, isto é uma capacidade anual por sala operatória de 1750 a 2000 intervenções, tendo por base um funcionamento de 8 horas/dia, durante 250 dias/ano, e uma média para cada intervenção de 60 minutos. Propõe-se assim valores com níveis de eficiência superiores a 100% e objectivos de produção só possíveis de atingir com a inclusão da dita pequena cirurgia. Se considerarmos nos mesmos pressupostos os desperdícios de tempo entre intervenções cirúrgicas e a preparação inicial do programa cirúrgico então mais realisticamente poderíamos pensar numa produção cirúrgica anual de cirurgia major de cerca de 1350 a 1500 intervenções por sala operatória, segundo os pressupostos descritos anteriormente.
2 - Os números apresentados oficialmente pelo IGIF para a CA em Portugal referem-se a todos os internamentos de 0 dias, isto é, procedimentos minor ou major, cirurgias programadas ou de urgência. De facto um programa de CA não se baseia somente no factor temporal, exige de facto a inclusão de cirurgia major programada, com admissão e alta no mesmo dia, num conjunto de pressupostos organizativos que permitam a inclusão desse doente segundo os critérios de segurança e qualidade internacionalmente recomendados. Da casuística que o IGIF publicamente apresenta apenas 25 a 30% poderá representar a CA no conceito que anteriormente foi descrito.
3 - Finalmente os Contratos-Programa estabelecidos para os futuros hospitais, todos eles privilegiando a CA, definem áreas completamente desajustadas para esta prática, exceptuando o Centro Pediátrico de Coimbra e o Hospital de Lamego. Assim a totalidade dos programas (Quadro I) estabelece um número claramente insuficiente de camas para o recobro pós-operatório (incluindo fase I - unidade de cuidados pós-anestésicos, e fase II), com uma média de 3 camas para cada sala operatória. O número internacionalmente recomendado é de 3 camas para a fase I e mais 3 camas para a fase II (num total de 6) por cada sala operatória. O planeamento acima referido só torna viável uma Unidade que preveja um volume elevado de pequenas cirurgias, não necessitando estas de recobro pós-operatório. Um claro contra-senso, em especial, quando aceitamos por correcta a definição de CA da DGS descrita no ponto 1. Aliás, esta situação não é nova, e tornou muitos dos projectos dos novos hospitais públicos, recentemente inaugurados, de difícil programação e gestão no que respeita à maximização dos recursos instalados na área destinada à CA. São disso exemplo como podemos observar os casos do Hospital de Pedro Hispano - Matosinhos (3 salas operatórias para 5 camas de recobro pós-operatório), do Hospital de Vale do Sousa - Penafiel (2/3 salas operatórias para 6 camas de recobro), ou do Hospital de S. Teotónio - Viseu (3 salas operatórias para 8 camas de recobro).
QUADRO I - A Cirurgia Ambulatória nos novos Hospitais do SNS.
Hospitais - Novos Projectos
Salas Operatórias
Camas de Recobro
Hospital de Faro (ampliação)
2
6
Hospital de Santiago do Cacém
2
5
Hospital Pediátrico de Coimbra
2
12
Hospital de Lamego
1
6
Centro Materno Infantil do Norte
3
9
Centro Hospitalar Póvoa / Vila Conde
2
4
Hospital de S. Marcos (Braga)
2
6
Urge assim planearmos correctamente a CA no nosso país. Em especial, quando podemos observar experiências nacionais de enorme interesse e com um impacto potencial surpreendente no futuro próximo: colecistectomia laparoscópica (com duas experiências pioneiras em duas Unidades de CA), lobectomias da tiróide e discectomias lombares; experiências estas que fariam inveja a muitas Unidades Europeias.
Durante os três dias do Congresso houve espaço para uma ampla discussão multidisciplinar com reflexão sobre os aspectos organizativos, clínicos e de enfermagem; Os aspectos relativos à gestão arquitectónica do espaço físico das Unidades e ainda as questões relativas com a qualidade dos serviços prestados foram de igual modo abordados.
Foi opinião unânime de que o Congresso se revestiu de grande importância para o futuro desenvolvimento da CA em Portugal em especial pelo compromisso público assumido pelo Senhor Secretário de Estado da Saúde de que a CA passa também a ser um assunto de primordial importância para a nova equipa governamental do Ministério da Saúde. Os objectivos definidos pela Comissão Organizadora aquando do planeamento do II Congresso Nacional, foram amplamente atingidos. Foi consensual a necessidade de se criarem condições ao real e inequívoco desenvolvimento da CA em Portugal, nomeadamente:
1. Reestruturação do financiamento da CA em Portugal , através de uma tabela indexada à dos actuais GDH para cirurgia em regime de internamento de forma a não limitar quaisquer procedimentos que os respectivos clínicos responsáveis pelos diversos programas hospitalares nacionais admitissem incluir, e de acordo com a proposta feita pela APCA. Julga-se oportuno referir que países como a Austrália onde o sistema de financiamento é o do GDH, não existe duplicidade de tabelas conforme o regime cirúrgico adoptado, mas tão somente uma tabela única.
2. Criação de uma rede de referenciação hospitalar no domínio da CA, segundo os objectivos programáticos do Programa Saúde XXI do Eixo Prioritário II do III Quadro Comunitário de Apoio 2000-2006 , através de uma dotação orçamental que vise criar infra-estruturas capazes de dar resposta eficaz ao desenvolvimento de programas de CA, identificando os Hospitais prioritários em que a implementação do programa seja não só exequível (em termos de financiamento como de equipamento) como desejável (relativamente ao interesse e disponibilidade dos profissionais de saúde). Aliás em boa hora reconheceu o Sr Dr Adriano Natário a oportunidade deste momento no sentido de se elaborarem rapidamente projectos de CA no âmbito deste Programa Saúde XXI, deixando este repto a todos os presentes.
Assim, em jeito de conclusão, poderíamos dizer que o desenvolvimento da CA terá necessariamente que passar por:
1. um correcto planeamento que preveja os potenciais utilizadores e o volume de intervenções cirúrgicas, que defina estratégias a curto e longo prazo com o fim de atingir os objectivos acordados, que estabeleça as necessidades de pessoal, o organigrama da Unidade e o circuito organizativo do Projecto a implementar quer na Instituição Hospitalar quer integrando os Cuidados de Saúde Primários, prevendo assim um contínuo na prestação dos cuidados de saúde;
2. um projecto arquitectónico baseado no planeamento acima indicado, com flexibilidade na estrutura de forma a permitir ampliações ou reduções da mesma no futuro, construído, idealmente, numa base de módulos, e prevendo de forma ajustada os espaços necessários ao recobro pós-operatório;
3. um projecto financeiro que preveja custos de execução, de aquisição de equipamento, de manutenção da estrutura, que analise a viabilidade económica do Projecto;
4. um projecto clínico que preveja um staff médico e de enfermagem com experiência e de elevada qualidade, sensiblizado e motivado para a problemática inerente à CA, que estabeleça normas orientadoras para uma correcta e criteriosa selecção de doentes e procedimentos cirúrgicos, que defina protocolos de actuação médica (cirúrgica e anestésica) e de enfermagem para o pré, per e pós-operatório;
5. um sistema de informação e apoio ao doente e família, com recomendações e normas para o pré-operatório e conselhos e avisos de como proceder no caso de complicações no pós-operatório; um sistema informativo que dê confiança ao doente e lhe permita um fácil acesso aos prestadores dos cuidados de saúde, a qualquer hora;
6. uma avaliação contínua da qualidade dos cuidados de saúde através da utilização de indicadores de qualidade, que procurem identificar erros, de forma a que investigando as suas causas, possamos encontrar soluções, e consigamos melhorar os cuidados cuja prestação somos responsáveis; devemos ainda promover a implementação de auditorias internas e externas;
num sistema humanizado cujo alvo seja única e exclusivamente o doente.
Para que tudo isto seja possível não basta a boa vontade dos Profissionais de Saúde. É fundamental que o Poder Político sinta de forma clara, inequívoca, a necessidade e o interesse da CA, defina políticas promotoras do seu desenvolvimento, trace estratégias e estabeleça prioridades para o seu correcto planeamento. Será necessário que incentive as instituições hospitalares e os profissionais de saúde para a sua implementação, economicamente ou de outra forma, já que, a Legislação em vigor, ainda que permitindo o desenvolvimento da CA, penaliza-a e não é atractiva para uns e outros.
Faz-se um repto aproveitando o compromisso assumido pelo Senhor Secretário de Estado da Saúde aquando da Cerimónia de Encerramento deste evento científico, para que nos próximos dois anos sejamos capazes de criar as condições mínimas necessárias de formar a permitir um desenvolvimento expressivo da CA em Portugal e que no Alvor, Algarve, em 2004, durante o III Congresso Nacional de Cirurgia Ambulatória, a realidade portuguesa no domínio da CA seja bem diferente da actual.
*Presidente do II Congresso Nacional de Cirurgia Ambulatória
Presidente da Associação Portuguesa de Cirurgia Ambulatória
Membro do Comité Executivo da Associação Internacional de Cirurgia Ambulatória